Introdução Nosso atual século XXI tem sido marcado por transformações […]
Introdução
Nosso atual século XXI tem sido marcado por transformações sociais rápidas e, por vezes, desconcertantes. Um fenômeno recente que ilustra bem essa tensão entre o novo e o tradicional é o uso dos chamados “bebês reborn” — bonecas hiper-realistas que imitam bebês recém-nascidos, com direito a peso, textura da pele e até cheiro de neném. Se antes eram apenas itens colecionáveis ou utilizados em terapias, agora passaram a protagonizar debates jurídicos e legislativos, ao serem inseridos no espaço de direitos voltados a crianças reais. A questão que se impõe é: onde termina o afeto legítimo e começa o delírio jurídico?
O Caso da Licença-Maternidade
O episódio mais emblemático dessa nova controvérsia ocorreu em Salvador, onde uma funcionária de um hotel solicitou licença-maternidade alegando vínculo afetivo com seu bebê reborn. Segundo ela, o laço com a boneca era tão profundo quanto o de uma mãe com um filho de verdade, justificando o afastamento remunerado de quatro meses. A empresa negou o pedido, e a funcionária ingressou com uma ação na Justiça.
O juiz responsável extinguiu o processo após a autora desistir da ação, mas não sem antes tomar medidas sérias: comunicou a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Polícia Federal (PF) e o Ministério Público Federal (MPF) para apurar eventual falsidade ideológica, já que documentos como certidão de nascimento do suposto “bebê” foram apresentados no processo — um indício de possível crime (Carta Capital).
A Resposta Legislativa
Casos semelhantes começaram a surgir em outros estados, o que levou autoridades a adotarem medidas preventivas. No litoral paulista, o município de Guarujá apresentou um projeto de lei que prevê multa de R$ 11 mil para quem tentar obter benefícios públicos destinados a crianças reais — como assentos preferenciais, vagas em creches ou auxílio financeiro — utilizando bebês reborn como se fossem filhos legítimos (G1 Santos).
O projeto foi justificado pela prefeitura com base em relatos de cidadãos que viram pessoas utilizando as bonecas para furar filas no transporte público ou obter prioridade no atendimento de saúde. A medida, portanto, é uma reação direta a uma tentativa de burlar o sistema de proteção infantil com base em ficção.
O Veto ao “Dia da Cegonha Reborn”
A tentativa de institucionalizar o fenômeno também foi barrada no Rio de Janeiro. Um projeto de lei aprovado pela Câmara Municipal visava criar o “Dia da Cegonha Reborn”, com o objetivo de homenagear as artesãs que produzem essas bonecas. O prefeito Eduardo Paes, porém, vetou integralmente a proposta. Em sua justificativa, publicada nas redes sociais, foi categórico: “Com todo respeito, mas não dá” — sinalizando que, apesar do mérito artístico, a ideia de oficializar um evento municipal em torno do reborn ultrapassa o razoável (G1 Rio).
Considerações Jurídicas
Embora o direito contemporâneo deva acolher a diversidade e proteger os afetos legítimos, é fundamental lembrar que os benefícios previdenciários, trabalhistas e assistenciais têm natureza objetiva. A licença-maternidade, por exemplo, está prevista na Constituição e na CLT para casos de nascimento, adoção ou guarda judicial de crianças — todas situações que envolvem um ser humano real.
Especialistas ouvidos pelo site Migalhas alertaram que aceitar esse tipo de pleito seria abrir as portas para uma erosão do sistema jurídico: “Não se trata de negar o afeto de alguém por um objeto, mas de impedir que o ordenamento jurídico seja instrumentalizado para finalidades que não foram previstas pelo legislador” (Migalhas).
Além disso, há implicações éticas e sociais. Conceder direitos trabalhistas com base em vínculos fictícios colocaria em risco a credibilidade do sistema e poderia gerar precedentes incontroláveis. O que hoje é um bebê reborn, amanhã poderia ser um animal de estimação ou até um avatar digital — o que banalizaria conquistas históricas do direito do trabalho e da infância.
Conclusão
A sociedade moderna enfrenta o desafio constante de lidar com o novo sem abrir mão do bom senso acumulado ao longo de séculos de tradição jurídica. A febre dos bebês reborn é, antes de tudo, um sintoma de uma era em que o emocional deseja sobrepor-se ao racional — um risco perigoso quando se trata de política pública.
Sem negar o valor terapêutico que essas bonecas podem ter em contextos específicos — como no tratamento de luto ou de distúrbios psicológicos — é necessário que se mantenha a distinção clara entre a realidade e a ficção. O direito não pode se curvar a sentimentalismos que, por mais sinceros que sejam, não correspondem a fatos. Em tempos de incerteza, preservar os pilares da racionalidade jurídica e da experiência histórica é mais necessário do que nunca.
Por
Erika Knochenhauer
Advogada