*Por Rodrigo Albuquerque Maranhão de Oliveira Se a vida em […]
*Por Rodrigo Albuquerque Maranhão de Oliveira
Se a vida em condomínios sempre foi prato cheio para desavenças entre vizinhos, nos últimos cem dias a “tragédia brasileira” vem sendo encenada e assistida por uma audiência jamais vista. Atores e plateia se confundem – e por vezes assumem também o papel de júri.
A partir dos decretos estaduais e municipais que determinaram restrição de circulação, desde março a maioria da população brasileira tem vivido dentro de casa. Viver, aqui, deve ser lido em toda sua abrangência: trabalhar, estudar, fazer exercícios, se divertir. As famílias que nas grandes cidades costumavam se encontrar apenas no fim do dia, agora disputam os horários de melhor conexão à internet para suas obrigações e distração, disputam o sofá da sala, mudam seus horários. Já não existe mais – ou pelo menos ficou temporariamente suspenso – o horário comercial.
Esse ajuntamento de gente nos apartamentos produz ruído. É a TV que incomoda, a criança correndo, o vizinho se exercitando…logo acima do seu quarto, justo na hora da sua video chamada, da sua entrevista, da prova do semestre. Como se concentrar? A sensibilidade de alguns – mais exacerbada que de outros – tem sido colocada à prova. Cada um dentro de sua razão, movido pelos mais nobres motivos (irritação, impaciência, necessidade, sono prejudicado, desemprego) causados ou aumentados pelas restrições recentes, se vê autorizado e cobrar satisfações, a chamar o síndico, a agir como senhorio do condomínio.
Se antes uma reunião de amigos na casa ao lado incomodava, agora ficou insuportável: às 22h01 o interfone toca. É hora de silêncio. Todos fomos transformados em vigias da vida alheia. Viramos aqueles e aquelas que tem sempre um copo à mão para escutar pela parede os segredos e atividades dos moradores ao lado (e à frente, e do outro lado da rua). A vigilância das câmeras de comércio, dos radares da Prefeitura, das antenas de celular, voltou à mais antiga tecnologia de controle de privacidade: a vizinhança.
Os motivos que nos levam a “hackear” nossos vizinhos, embora compreensíveis, não nos autorizam, à luz da lei, a passar a agir como fiscais de conversas, a difamadores em grupos de aplicativo, a colocarmos uma estrela na lapela e passear como xerifes. O xerife do velho oeste fiscalizava, autuava, punha ordem; era a própria lei. Essa nova “xerifice da pandemia” tem levado muitas pessoas a assumir a fiscalização da vizinhança para anotar decibéis de risadas, volume de TV, quantidade de passos dentro de casa. Não se enganem, xerifes, nem mesmo a sindicância os transforma em encarnação da lei. Essa regra que as sociedades modernas passaram a adotar como limites comportamentais, como parâmetros para a ação individual que visa criar condições para o desenvolvimento econômico e social da coletividade, é critério impessoal: todos são iguais perante a lei. Perante a lei quer dizer que o sistema jurídico iguala as pessoas, sejam elas quem forem, estejam qualquer condição, exercendo a função que for.
Ao sermos regidos pela lei, a ela estamos sujeitos, obrigados. Todos temos os mesmos limites e permissões. Acostumamos a acreditar no ditado que diz “seu direito termina onde o do outro começa”. Há, porém, outro ditado mais adequado: “seu direito começa onde o do outro começa”: nossos direitos são iguais perante a lei. O direito de estar em casa, conversar sem ser constrangido, rir e desopilar as tensões recentes é direito concreto. Vigiar a vida alheia, reger as atividades da unidade ao lado (ou à frente) da sua é quebra de privacidade. Exceto se os limites claros de perturbação à ordem e ao descanso estejam sendo violados, o incômodo que alguém sente não pode ser elevado à categoria de norma de conduta, de violação do direito de vizinhança. Portanto, mais do que nunca valem os velhos conselhos: temperança e moderação não fazem mal a ninguém. Agir por impulso, tomar frequentemente a posição de acusador da vizinhança, além de te tornar pernona non grata, em casos mais acentuados, pode configurar invasão de privacidade.
Sobre Rodrigo Albuquerque Maranhão de Oliveira
Rodrigo Albuquerque Maranhão de Oliveira é especialista em Direito Empresarial no escritório Sotto Maior & Nagel.