Introdução Fraude com Pix não é apenas um evento operacional; […]
Fraude com Pix não é apenas um evento operacional; é um teste de desenho institucional. Em ambientes de alta cadência transacional, a assimetria entre a velocidade do fraudador e a capacidade reativa do participante do arranjo expõe um hiato clássico: regras existem, mas não se convertem em rotinas, evidência e decisão no tempo necessário. A hipótese que orienta este texto é simples: o desempenho do Mecanismo Especial de Devolução (MED) é função direta da arquitetura jurídicooperacional — contratos que autorizam as medidas, procedimentos que definem o critério de materialidade e governança que produz prova auditável. A contribuição é prescritiva: propor um modelo de execução que torne o MED previsível, reduza perda econômica e estabilize o risco jurídico.
O arranjo Pix está positivado no Regulamento aprovado pela Resolução BCB nº 1/2020, que trata de participantes, contas transacionais, mensageria e segurança. O MED, instituído pela Resolução BCB nº 103/2021, confere ao PSP do recebedor a faculdade de debitálo para devolução sem novo consentimento, quando presentes indícios suficientes de fraude ou falha operacional com crédito indevido, desde que cumprido o rito formal (abertura de notificação de infração no DICT, análise e aceite). Em reforço, a Resolução BCB nº 147/2021 introduziu o bloqueio cautelar por até 72 horas pelo PSP do recebedor, instrumento desenhado para preservar saldo enquanto se apuram os fatos e se processa eventual devolução. Guias e manuais oficiais detalham hipóteses, papéis e requisitos probatórios, distinguiendo o MED do chargeback de cartão: não há devolução por mera irresignação; exigese lastro mínimo de evidência e conformidade procedimental. Em matéria de prazos, o regime combina janelas longas para o titular reportar o caso e janelas curtíssimas para o participante instaurar a notificação e adotar medidas conservatórias, com níveis de serviço medidos em minutos e metas de cumprimento elevadas; essa assimetria temporal condiciona a taxa de recuperação e, portanto, o resultado econômico.
A execução tecnicamente sólida do MED parte de quatro eixos encadeados. Qualificação do evento: atendimento opera um roteiro que distingue fraude típica (engenharia social, subtração de credenciais, coerção) de mero erro operacional, coleta elementos mínimos (logs de autenticação, metadados do dispositivo, trilhas de CRM, prints do fluxo, BO quando pertinente) e classifica materialidade. Abertura célere da notificação no DICT: instaurada no primeiro contato útil e acompanhada de documentação padronizada, de modo a “travar” o caso no ecossistema antes do esvaziamento da conta. Medidas conservatórias: acionase o bloqueio cautelar quando presentes os pressupostos, com registro de justificativas e vinculação do tempo de bloqueio ao ciclo de análise; superada a fase de apuração, decidese pelo débito para devolução via MED ou pelo levantamento do bloqueio. Monitoramento e registro: acompanhase saldo e movimentos por janela contínua, enquanto se produz dossiê com cadeia de custódia probatória, apto a auditoria interna, supervisão e contencioso. O critério de qualidade é binário: ou a organização consegue executar em minutos com prova, ou converte o caso em disputa de versões.
Quatro falhas descrevem a maior parte das perdas. Temporal: sem gatilhos e SLAs explícitos, a notificação no DICT é aberta tardiamente e o bloqueio se torna inócuo; a janela de preservação expira antes de qualquer decisão. Contratual: instrumentos com clientes e parceiros que não positivam bloqueio cautelar e débito para devolução geram resistência legítima, dilatam prazos e erodem a eficácia do MED. Probatória: a ausência de coleta imediata e padronizada degrada o caso a narrativa unilateral; sem logs e metadados, o ônus argumentativo se desloca para suposições, fragilizando a decisão do PSP e ampliando litigiosidade. Organizacional: confundir MED com “pedido de estorno” genérico produz atrito entre participantes, alimenta reclamações consumeristas e acende alertas em adquirentes e bandeiras — que respondem com restrições e preço. Esses vetores não são anedóticos: em escala, transformam perdas marginais em passivo contábil e regulatório.
O MED deixa de ser loteria quando passa a integrar a governança como componente de produto. Isso implica três camadas. Normativacontratual: contratos de conta e de prestação de serviços que prevejam, de forma clara e transparente, bloqueio cautelar por suspeita de fraude, devolução via MED e autorização de débito correlato, além de deveres de cooperação e hipóteses de resolução por recusa injustificada. Processualoperacional: políticas que definem hipóteses, papéis (atendimento, risco, jurídico), critérios de materialidade e SLAs medidos em minutos, com automações que disparem abertura de notificação e bloqueio no primeiro contato útil. Probatóriaauditável: padronização de logs, prints, trilhas de CRM e laudos internos de análise, com guarda alinhada às obrigações de retenção e à defesa em consumo e responsabilidade civil. Para recebedores empresariais — marketplaces e plataformas —, políticas de cooperação com o PSP, regras de devolução aderentes ao arranjo e cláusulas de alocação de risco e seguro com sellers mitigam conflito colateral e estabilizam a experiência do usuário.
O MED não elimina a fraude; ele recompra tempo e reduz incerteza quando apoiado por contratos claros, rito célere e prova robusta. Organizações que tratam o mecanismo como variável de projeto — e não como favor ou improviso — convertem norma em resultado: menos perdas, menos litígio, menor custo regulatório e reputacional. Em termos de governança, isso é tudo o que importa: previsibilidade comprada por desenho, e margem protegida por execução.
Por
Arthur Vargas
Assistente Jurídico